Tuesday, September 30, 2008

O adeus às armas

Comecemos com um lugar-comum: tudo o que começa tem um fim. E, por agora, deixemo-nos de estórias para irmos straight to the point: o Formal Slang acaba hoje, com este post.

Ao longo das várias crises cíclicas que me apanharam a mim e ao blog, fui percebendo que não há nada como obrigarmo-nos a escrever para as falhas de inspiração serem preenchidas (se não com palavras brilhantes, ao menos com palavras). É por isso que a disciplina e a exigência de escrita se treinam todos os dias, ainda que na maior parte deles o resultado não seja bonito de se ver/ler. Quero, com isto, apenas dizer que não deixei nem deixarei de escrever. Primeiro porque não seria capaz, segundo porque não me reconheceria (outras razões haveriam a apontar, mas fiquemos por aqui). Mais tarde ou mais cedo volto a isto, noutras paragens. Esta fica por aqui – teve o seu tempo e a sua importância (pessoalmente tão grande que não adianta tentar explicar), mas deixou de fazer sentido. Só isso – deixou de ter o lugar que merecia, em mim.

Deixemo-nos de lamechices: até a uma próxima. Foi bom, foi muito bom. Fica aqui o diário que não tive, em forma de bocadinhos de crescimento. Fica aqui uma parte de mim, portanto, mais ou menos bonita consoante os dias, mas seguramente muito feliz no seu todo.

Até a uma próxima meus senhores, até. Até breve.

Sunday, August 17, 2008

Intervalos de ti.

Foi contigo e com os momentos em que não te tive - mais, até, com estes - que vivi a fase crítica da adolescência. Que a construí, que me obriguei a ser como todos os todos, a ser normal nos sentimentos e nos desejos. Conheci-te algures num dia perdido da infância, entre brincadeiras e recreios de areia, mas só te re-conheci quando precisava desesperadamente de ti. Tu percebeste e gostaste, fizeste-me perceber e gostar também e arrastámo-nos os dois entre promessas tácitas e empurrões falsos. Quis-te mudar como se muda a mobília de um quarto ou se altera a forma de arrumar a roupa num armário. Quis-te - todos os dias, dia após dia - mas não te quis. Queria o teu outro lado, o lado que eu insistia que via, que eu insistia que havia. E via - oh, se via! -, e sabia-o real, mas, só para me contrariares (gostas disso, tu), quanto mais eu o procurava mais tu o negavas. Foi nestes intervalos de ti que te amei. Foi nos reflexos do teu outro eu, nas vertigens dos teus dedos e da tua alma, nos momentos em que o teu rosto me fitava calado, na tua demanda absurda de negar as palavras. Escrevi-te promessas e escrevi-nos, vezes sem conta, até desbotar o papel. Amarrotei-o na palma da mão e levei-to, meia acanhada, meio nervosa, meio ansiosa. Leste e sorriste, fizeste comentários sobre a forma, a composição, a gramática em geral e a escolha do tempo verbal em particular - isto sem nunca, nem por um bocadinho, aludir ao conteúdo. Tem graça que - que irónica, a vida - quanto mais me negavas a conversa franca, mais nos misturávamos com a estória, com a nossa estória, e nos fundíamos numa simbiose tão perfeita que se tornou indissociável. Acontece que, entre malabarismos e contornos abertos, nunca te disse a verdade: não tenho pretensões de lhe/nos escrever um fim ou de lhe dar futuro. Há um dia em que, simplesmente, ela não mais vai sair da gaveta. Vai, simplesmente, perder-se entre outras coisas. É por isso que eu sei que é a adolescência pura e lixada a pregar-me a devida rasteira - porque nunca nos entrevi entre as linhas do futuro - não contigo, pelo menos, talvez com o teu outro eu tenha vislumbrado uns raiozinhos ténues de vida. Ah, ter o mundo concentrado num frasquinho! Obrigada por isso, meu caro, obrigada pela adolescência. Mas, sabes, começa a ser hora - o cartão de eleitor já espreita na carteira e as exigências não me permitem o habitual desgaste quotidiano que, convenhamos, era um luxo desnecessário.
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Claro que podes sempre vir comigo,
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mas não te aconselho. Deixa-te estar que estás bem. Eu levo a gaveta e levo a criança que há em mim pela mão, a servir de escudo. Começa a ser hora, começa - Lisboa, querida e desgraçada Lisboa!
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Friday, July 18, 2008

É isto.


Há momentos em que os desafios são tão grandes que não lhes vemos os contornos e, por isso, sentimos que, de alguma maneira, nem sequer nos pertencem. São-nos exteriores, mesmo quando os estamos a viver. E, por isso, vamo-nos desprendendo de pequenos desafios, para ver se conseguimos espaço para os grandes – é uma atitude errada e perigosa. E a negação do medo não adianta: é ele que nos move – medo, ansiedade, curiosidade, adrenalina. Só depois, numa segunda fase, já sob a designação de recordações é que nos apercebemos que éramos nós – raios, éramos mesmo nós! – e que, seja qual for o desfecho, fomos os protagonistas da nossa estória.
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Fim de uma etapa.

Wednesday, July 02, 2008

Entre nós.

XII Capítulo de uma estória que não é para ser publicada na integra.

Concerto.

(Dar as mãos não é apenas entrelaçar os dedos – desengana-te se achavas que sim. Dar as mãos é, mais do que tudo, ter vontades comuns. Não gosto que me encostem à parede com palavras. Ainda assim, agrada-me um bom desafio. Começa o que não disseste demónio, diz o que tens a dizer! Só jogando limpo é que chegaremos a bom porto. Garanto-te, não há nada mais estimulante do que a transparência. E, apesar de ela não querer, eu confio em ti.

Faz-me um sinal qualquer, um balanço de ancas, um jogo de joelhos, um aceno subtil de cabeça. Faz-me o que gostarias que te fizessem, se te vissem falar de mais. Confesso – eu às vezes embarco em conversas banais. E, pior, em pensamentos tipificados e em atitudes estereotipadas – embarco na vulgaridade que se espalha por aí, pelas monstras das lojas e nos sacos de supermercado que embatem contra as nossas pernas nos passeios, expulsando-nos para a estrada e assumindo-se donos e senhores daquilo que diríamos nosso – que se espalha por esse mundo fora. Frágil, esta noite estou tão frágil. Quebro por dentro, não limpo os cacos. Há nuvens de fumo a entrarem-me pelo nariz e a saírem pelas orelhas. Estalo a língua no céu da boca e cruzo os dedos dos pés. Põe-me o braço no ombro, dá-me qualquer coisa de teu: as mãos, o cabelo, o rosto. Envolve-me, cria fisicamente uma ligação comigo; torna-te, nem que seja apenas por um momento, uma continuação de mim. Sim, eu preciso de alguém, eu preciso de ti. Preciso de nós. Só assim me poderei dar a alguém – quando isso significar não me dar a ninguém, porque, no fundo, quem me recebe sou eu mesma, mas em ti. Percebes?)
* Jorge Palma a itálico

Saturday, June 28, 2008

Intervalo de pano

Do outro lado da rua está uma mulher a tocar violino. Não é artista nem música de profissão – ganha apenas a vida a tocar violino. Foi autodidacta, tudo o que sabe aprendeu em livros ou de ouvido. Talvez por isso os erros técnicos sejam frequentes e notórios, o que não significa que a melodia não seja interessante e que a expressividade não compense tudo isso (os enganos, o cheiro, o cenário…). A violinista (apesar de tudo, é-o) tem duas crianças – lindas, lindas, sujas e lindas! – filhas de pai incerto. Não foram fruto de nenhuma paixão cinematográfica e cor-de-rosa. Nasceram, sim, das necessidades do corpo (é preciso falar destas coisas com naturalidade, segundo o que oiço dizer). Carência. Pura carência, a todos os níveis – que o prazer físico não resolve, mas ajuda a disfarçar. As crianças, essas mais dadas à moral (que, não sabendo o que é, usam por natureza), descobrem-se nos carrinhos de lata com que brincam

Que sei eu, disto tudo? Estou apenas do outro lado da rua, parada a olhar para uma mulher a tocar violino. E, por instantes, os meus preconceitos vêem com clareza as duas crianças, a barraca modesta (até para barraca), a mulher nua, na cama, a gemer, as moedas pretas que comprarão o pão. Tudo isto é natural – que assim seja e que eu o pense sem, na verdade, o saber. É tão natural que me mete nojo e me agonia.

É tão natural que me mete nojo e me agonia.

Saturday, May 31, 2008

Expliações. E narcisismo.

"- Shiu. Anda cá. Dá-me a mão. Tens os dedos frios! Shiu, tem calma. Toma-me. Escreve em mim, escreve sob mim, sobre mim, sobre nós. Não percebes que o não consegues evitar? Ou isso, ou nada. Deixa as tuas personagens descansar, também têm vida, também têm falhas, exiges demasiado delas. Deixa-te estar aqui, um bocadinho ao pé de mim. Vamos, agarra na inspiração que te dou e besunta-me de palavras. "

Não percebes que já o fiz? Passo o tempo a fazê-lo. Mas não posso publicar isso, não posso mesmo. Sim, sou egoísta, e depois? No dia em que o fizer é porque nos ultrapassei.

"- Enganas-te. Esse dia significará apenas que nos assumiste."

Ou isso. Mas como posso eu fazê-lo se tu não o fazes? Além do mais, faço-o todos os dias. Todos os dias me assumo em ti e deixo que te assumas em mim. O que é que os outros são chamados ao caso? Deixemo-nos de conversas. Aquela estória não vai sair da gaveta. Pelo menos para já, pelo menos por agora. Daqui a um tempo, quem sabe, daqui ao tempo em que eu me sentir confortável com isso.
...
Peço desculpa. Peço desculpa por vos privar do melhor que alguma vez escrevi, peço desculpa de não publicar "há que tempos" - e, a verdade, é que nunca andei tão envolvida nem nunca escrevi tão compulsivamente. Acontece que, ao contrário da Maria que se ia construíndo capítulo a capítulo (e que continua a construír-se e a aparecer de vez em quando), as duas estórias que ando a desenvolver já apareceram em mim completas - e não posso permitir intromissões externas até as ter prontas. Seja como for, uma está quase e deve aparecer em breve: já aqui fazia falta uma estória sequêncial e já me fazia falta a mim o compromisso disso e o trabalho que envolve. Não deixem, portanto, de vir, por favor. A sério que está para breve.

Thursday, May 08, 2008

Prioridades de meninice

É uma criança bonita, sorridente. Aproxima-se da cabine, põe-se em “bicos dos pés”, estica-se toda e consegue que a mãozita tímida apareça ao balcão e se torne visível para quem está do outro lado. Deixa cair as três moedas que tem entaladas entre os dedos de modo a rolarem e a fazerem barulho e pede, na voz melodiosa de quem ainda é acompanhada por fadas:
“ – Um bilhete para o carrossel, por favor”.
O barulho da feira obriga-a a repetir a pergunta.
“- Um bilhete, por favor”.
Sente o papel rugoso contra a pele e afasta-se, sem mais palavras. O carrossel é dos antigos, com cavalos de madeira pintada suspensos num bonito varão, de duas cores entrelaçadas. O toldo é vermelho e branco, como não podia deixar de ser. A criança fica parada, durante várias voltas, a apreciar uma magia que nem toda a gente vê. O colorido veloz brilha nos olhos dela e o bilhete é apertado com as duas mãos, enquanto o boneco de trapos espera, inexpressivo, debaixo do braço esquerdo.
A hora de jantar aproxima-se e, apesar de ainda haver a claridade do lusco-fusco, o movimento esmorece. O carrossel pára e prepara-se para um intervalo. A menina, que até aí não tinha saído do seu lugar, aproxima-se do maquinista e diz:
“ – Eu ainda não gastei o meu bilhete”.
O senhor, já velhote, derrete-se.
“ – Sobe que eu ligo-o. O motor ainda está quente, não custa nada”.
A menina aproxima-se do cavalo mais pequeno – um pónei, ainda – e prende o boneco a uma das pegas de metal, onde é suposto as crianças medrosas segurarem-se.
“- Então, tu não sobes? Precisas de ajuda?”
“- Ele é que quer andar. Eu só quero ver”.
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